segunda-feira, novembro 27, 2006

Uma estória para amanhã

Em seu apartamento pequeno, o escritor, um tipo bonachão, sentado em uma mesinha, com um computador, tenta escrever uma estória como há muito tempo não fazia.

ESCRITOR

Há muito tempo sou jornalista. De fato, é isso que faço... Sou reconhecidamente bom por comentar política, fazer verdadeiras caricaturas literárias de nossas figuras públicas. Faço críticas cômicas. Ou melhor, tragicômicas, porque hoje em dia está difícil algo que não seja trágico na política. Mas tento não ofender ninguém... Não é muito o meu estilo... No começo, essa história de ser jornalista já me rendeu muita gastrite. Dizem que é a profissão mais estressante do mundo. Que mais provoca ataques cardíacos. (PAUSA) Bem, é o que dizem... E agora, só falta eu escrever uma estória. Nunca escrevi uma estória totalmente ficcional. Pediram para eu bolar uma estória para o jornal, mudar um pouco de enfoque. Mas que diabo de estória!? Já escrevo meus pensamentos e até os sentimentos mais íntimos... Mas nada de estória... nunca... A inspiração parece que não estrapola o tamanho do papel quando se trata de estória. Mas vamos lá... Vou tentar uma estória simples.

(Ajeita-se bem na cadeira, fecha e abre os olhos).

ESCRITOR

Caramba! Mas essa tela não pede por uma estória! Para mim pede para continuar assim: imaculada! Pois bem, vou escrever sobre a primeira coisa que me vier à cabeça... Vou começar com um buraco... sim... O personagem, que há de ser um menino, está entrando em uma pequena caverna, feita de pedras... (Entra o personagem ‘menino) (SUGESTÃO: simula olhar para dentro de uma caverna, curioso) Caverna bem estreita e escura. Parece promissor, não? Uma caverna? Tudo pode haver numa caverna: um coelho e o mundo encantado, uma homem que percebe não ter cheiro, todos os cheiros do mundo, o aleph... Enfim, a caverna inspira a própria fábula! Pois bem, descrevo as pedras que fazem a entrada do buraco, descrevo a escuridão (e o personagem ‘menino’ olhando curioso para o escritor, à espera de uma continuação, um desfecho) como se ela fosse a única coisa que o menino pudesse prever para a caverna... E talvez só encontre isso mesmo...

MENINO

Mas espera um pouco! Eu sou uma criança! Vou me limitar somente à escuridão infinita? Acho que eu imaginaria tudo, menos a escuridão infinita... Chegaria até a ver, antes mesmo de entrar... Será que o senhor não se lembra de como imaginava as coisas na minha idade? Talvez devesse se esforçar um pouco para lembrar... Senão, acho que você não deveria nem me fazer entrar no buraco. Com um começo ruim desses... (rindo)

ESCRITOR

Pena, essa estória do menino e da caverna parecia promissora, não?... Olhe só, já alcancei a primeira página! Sabe, (se dirigindo ao menino) ao final da primeira página é como se houvesse uma barreira mística, ou se aborta a história nesse ponto ou se continua e seja o que deus quiser. Mas eu não consigo, não consigo imaginar o que um garoto pode esperar de um buraco. E muito menos o que pode encontrar.

MENINO

Talvez a barreira seja o buraco. Você não consegue passar da primeira página e eu não consigo entrar na caverna. Eu dependo de você para ver o que tem lá dentro... Estou curioso! Você não disse que fazia as coisas parecerem engraçadas? Então! Faz a caverna me fazer rir!

Você poderia dizer o que gostaria de encontrar! Vamos!

ESCRITOR (introspectivo)

Não consigo pensar em nada engraçado agora... É que de repente a escuridão me pareceu tão atraente, tão mais interessante do que qualquer coisa que você encontraria... Ela é profunda e seu fim parece intangível. Ao mesmo tempo, ela é absurdamente real. As expectativas que eu tenho dela são verdadeiras e simultaneamente inalcançáveis!

MENINO

E desde quando a realidade pode ser mais interessante do que a minha imaginação?

ESCRITOR

Eu não sei, mas teve um tempo em que o real se tornou mais interessante... Eu fantasiava muito quando pequeno, entende. Fingia ser um pirata impiedoso... Mas em um certo momento os meus sentimentos se tornaram mais interessantes que os sentimentos do pirata. Foi quando o mundo começou a ser incrível por si só. Não porque eu imaginasse que era fabuloso...

MENINO

E isso o que acontece... é bom?

ESCRITOR

Eu não sei. Eu perdi o jeito pra estórias de fantasia... Eu escrevo muito bem, comovo meus leitores, mas em grande parte escrevo sobre mim mesmo. Minha sensibilidade limita-se a mim e às minhas percepções. Mas acho que isso é um tanto natural, sabe? (Pausa) Quantos anos você tem agora, guri?

MENINO

Não sou nem mais tão guri, se você quer saber... Tenho onze anos.

ESCRITOR

Onze anos? Pois sabe que eu não me lembro de mim com essa idade. Não lembro da minha cabeça, de como eu pensava. É como se dessa idade para trás tudo fosse uma fantasia só. Não me lembro de nada direito. É como se esses anos estivessem do outro lado de...

MENINO (interrompendo o pensamento do escritor)

Um buraco!

ESCRITOR

Pois é, um buraco. E no fim que vê as coisas do outro lado da escuridão sou eu... A escuridão é metafórica. Você sabe o que é “metafórica”?

MENINO

É como uma alegoria, não?

ESCRITOR

Que no fundo não passa de uma estória.

MENINO

É. Você entra em um buraco daí e eu entro daqui... (Pausa) Mas o que estaria do outro lado da minha escuridão? Talvez, se eu entrar nessa caverna, eu vá perdendo a imaginação, não é?

ESCRITOR

Talvez sim. Não exatamente a imaginação, mas a fantasia infantil, entende? Pode ser que você ainda possa criar muitas coisas. Talvez você seja um artista! Mas acreditar de verdade na ficção que você cria, fica mais difícil... (pausa) Mas não se preocupe... Não precisa ser hoje.

MENINO

Não precisa ser hoje o quê?

ESCRITOR

Não precisa entrar hoje na caverna.

MENINO

E você também não. Não precisa entrar no buraco!

ESCRITOR

Não é que eu não preciso. É que do outro lado da escuridão da minha caverna, do meu buraco, eu não posso chegar. Não posso voltar... É como o mundo onírico que a gente deixa para trás ao acordar... Não dá para recuperar e às vezes nem consigo lembrar do sonho.

MENINO

Eu sei. Nunca lembro dos meus sonhos...

domingo, novembro 12, 2006

A Deusa no Exílio

(Texto baseado na obra A Deusa Branca, de Robert Graves).

A Deusa, imersa em frio, nostalgia e caos, discursa.

DEUSA

Já faz muito que estou aqui adormecida. Oscilo entre o adormecimento profundo e a consciência vibrante. Sonho, em meu sono, que os homens destroem. E destroem com o fim na própria destruição. Sim, eu sei que posso ser deveras ameaçadora. Minha presença excita exaltação e horror, não? O fruto despedaçado no chão pode parecer destruição. A leoa destrói o pasto que pisoteia rumo à satisfação de uma fome existencial. Mas não se fala em destruição ao se ver árvores frondosas em processo de vir a ser. A leoa prenha só faz irrigar a terra com seu leite.

Mas não é preciso explicação para meus desígnios. Meu amor é devastação... até do próprio amor. Eu destruo com a paradoxal calma e desespero da alma. Faço tudo ressurgir. Não sei ao certo como minha partida para o exílio ocorreu. Só que minha linguagem foi invadida, deturpada, desacreditada e, finalmente, esquecida. Alguns ainda a ouvem no fundo de seus corpos, como uma dor que perpassa o ventre e o coração. Lancinante e inquietante. Outros apenas me enxergam de longe, em meu corpo mais belo, como satélite apagado da terra. Os que vivenciam a minha evocação religiosa falam através de minha linguagem mística. Essa linguagem, reconhecida como profissão erudita, é a única para as quais as academias não estão abertas. É insustentavelmente mística porque carrega a essência do mito que foi abandonado, sufocado, mas que pulsa densamente... visceralmente. Vocês o sentem pulsar. Como um susto e uma inquietação inexplicáveis com o mundo que passa.

Eu sou o próprio mito poético. E a poesia é mergulhada em magia, em “desonrosa” magia. A poesia lhes foi segredada. O deus que hoje cultuam serve de baú para um segredo fechado por séculos.

Muitos passaram ao largo da linguagem mítica que eu inspirava. Ignoraram a morte, nascimento e beleza... E a criação foi irremediavelmente secada. Adoradores de Apolo dizimaram o encantamento e a esperança de minhas árvores sagradas (PAUSA), e eu, o ventre de todos os bosques, tive minhas crias arrancadas. Adoradores de Apolo tornaram as casas de cabeça para baixo. As mulheres foram expulsas de seu intelecto, quando o macho, em tentativa desesperada de libertação, deglutiu a homossexualidade ideal. E agora, minhas mulheres que deveriam ser atravessadas de corpo e espírito na busca pelo auto-conhecimento, são náufragas errantes. Elas mesmas já se esqueceram de sua linguagem. Elas mesmas observam o “hoje” com estranhamento... E não sabem ao certo... Não percebem que todos os mitos foram ridicularizados e todos os símbolos de sua linguagem e de sua essência pertencem ao circo, à mesa e ao jogo cartesiano. Só sentem o desprezo velado. Sabem que a linguagem poética racional não acompanha o seu sentimento e o desequilíbrio, que é o princípio de toda a criação. O desequilíbrio entre a morte e o ressurgimento da arte e da beleza.

Meu desabafo pode parecer perverso e irrelevante para os que são facilmente iludidos pelo dinheiro, que compra o hoje quase por inteiro, exceto a verdade. E os poetas possuídos por essa verdade devem confessar, no entanto, a sua deslealdade. Prestam a mim um serviço de meio-expediente. (Pausa) Pois seria melhor que não prestassem serviço algum! São raros os momentos em que em tempo restrito percebem o delírio de minha presença e de minha ausência. Só fazem ferir o mito poético recorrendo à “poesia clássica”. A verdadeira linguagem mística acontece como um milagre pra aqueles que são obstinados com a verdade. A verdade da minha existência. A verdade que sou em todo o tempo. Em todo o tempo e em tempo algum, pois que sou o avesso do tempo.