quarta-feira, dezembro 30, 2009

Cerveja solitária


Que minha vida flutue nas asas deste álcool doce e amargo que corre em meu sangue. Bernardo Guimarães é ficha se comparado aos meus sonhos manchados de luz e de fogo. Pantagruélica sou eu em meu devaneio que contamina a tarde em que venho repousar. Só que meu cansaço não é físico, nem dengoso, é minguante da vontade de permanecer de pé, acordada para o mundo. Mundo familiar demais... Sempre os mesmos tipos neste bar e as mesmas lagartixas na areia. Pouco a pouco me consome, pouco a pouco eu consumo a cerveja que pedi e me é custoso terminar. Corre lenta em meu corpo, entorpece meu cérebro e meus pensamentos. 
Mudo de lugar para o canto que me é próprio, perto do ladrilho frio da parede. Pouco a pouco sinto a saúde encurtar e as forças se esvaírem, como num gozo frustrado. Não quero mais me levantar. Tire-me daqui, me seqüestre dessa impessoalidade culta e grande que me rodeia. Me leve para o calor de quem me ama e só assim estarei compreendida, poderei me mover lentamente e resmungar os detalhes desimportantes da vida carinhosamente. 
A cerveja que repousava inquieta pingou, eu a fiz pingar. Doce e estático sonho que estou vivendo. Tudo se move menos eu, exceto minha mão frenética, que produz símbolos cada vez mais ilegíveis. Quero ordem, quero cama, quero tudo que me faça voar em sonho e fúria. Parei.

sexta-feira, novembro 13, 2009

Insônia


Quanta falta a faziam as canções de ninar. Quantos bois e quantas ruas, quantos anjos se fariam necessários para que ela conseguisse dormir. Pensava muito no sexo dos anjos e seus livros a colocavam nas nuvens junto com eles, tão peculiar a sua poética. Nos sonhos era um deles. Bastava um impulso para que se elevasse e brilhasse branca. Vivia nas nuvens. Tinha um compromisso com elas. Tão logo acabasse uma tarefa rotineira, voltava a elevar-se e assim era seu ser. Mas agora estava acordada no centro de uma estreita cama já caótica e muito menos acolhedora do que em outras madrugadas.

Soneto do não amor

Com o esquartejamento lisonjeiro
Desmembra a mulher ao seu interesse.
Se quer ser livre, ela já o é, açougueiro.
Mas que voyerismo radical é esse?

Contenta-se em assistir a ácida cena
De seu amor a revelar a alma a ti oculta
Para o outro corpo que a ela não tem pena?
Pretensa a liberdade que te avullta!

Se perde o viço é porque viu sumir
Dos seus distraídos olhos o brilho terno.
Efêmero seu amor o fez iludir.

Distantes lembranças lhe são etéreas
E murcham como o colo de Duília
Poucas as canduras que são eternas!

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Território das Cariátides

Seja bem vindo aos trêmulos bancos desta casa que te recebe. Por baixo deste chão, passa um trem que aos poucos abala nossa estrutura, mas não ruiremos. Somos mulheres muralhas, petrificadas pelo tempo, que sustentam o teto ao alto. Somos sólidas, mas nossos pés podem sentir o trem que passa de hora em hora e arrepia a pedra fria. Mas não podemos move-los, os nossos pés. E tu, estrangeiro, se quiseres fugir de nossa casa, não te perseguiremos. Porque o teto ruiria sobre nossas cabeças.

O nosso rosto não envelhecerá, porém não sorriremos e nem lágrimas derramaremos. A chuva que escorre pela pedra branca pode imitar as lágrimas. Assim choraremos somente quando a Terra chorar em tempestade e o teto acima dela se decompuser em água, em fragmentos d’água. Somos escravas que à época da construção deste templo fomos sacrificadas a sustentar a pedra. E com pouco tempo nos cansamos e quando quisemos cair mortas, nosso corpo permaneceu reificado em branca e fria pele. O estrangeiro que nos visita não pode ver nossas bocas abertas e sedentas, não pode ver nem ouvir nosso discurso, ou sentir o pulsar de nosso sangue. Porque de fato estamos mortas. Porém vivas, porque servimos ao propósito desta Terra e de homens, como tu, estrangeiro. O desconhecemos, mas sabemos que enquanto este teto estiver no alto, haverá vida e os homens estarão salvos de si próprios. Quando os homens nos derrubarem por sua ira ou indiferença, estarão fadados a viver sem escolha e sem o nada.

Clarice, meu amor, acorde. Acorde e olhe para mim. E seu corpo reverberava o som dessas palavras. Eram o som em meio ao sono. Clarice nunca era acordada, mesmo porque sempre acordava antes de todos, ia até a varanda e comungava com os apreciadores de café na madrugada. Podia jurar que ninguém nunca a havia visto dormindo. Quando se aproximavam e ela sentia a presença, dissimulava um sono profundo. Sua ontologia nunca se desvendara para eles em seu sono. Assim, nunca seria conhecida a menos que morresse e então, salvo engano, não mais existiria. Talvez o homem que agora a acordava não existisse. Ou quem sabe ela não mais existisse. O fio do sono não se rompia e ela estava sendo vista. Mas não sabia e, quem sabe, isso não fosse o suficiente para saber que ninguém a via.
E assim, não era uma mulher de areia, mas de lua e da luz refletida nela. A lua só se revela quando faz refletir essa luz masculina do sol. Mas qual o problema de ela se ocultar?