domingo, novembro 12, 2006

A Deusa no Exílio

(Texto baseado na obra A Deusa Branca, de Robert Graves).

A Deusa, imersa em frio, nostalgia e caos, discursa.

DEUSA

Já faz muito que estou aqui adormecida. Oscilo entre o adormecimento profundo e a consciência vibrante. Sonho, em meu sono, que os homens destroem. E destroem com o fim na própria destruição. Sim, eu sei que posso ser deveras ameaçadora. Minha presença excita exaltação e horror, não? O fruto despedaçado no chão pode parecer destruição. A leoa destrói o pasto que pisoteia rumo à satisfação de uma fome existencial. Mas não se fala em destruição ao se ver árvores frondosas em processo de vir a ser. A leoa prenha só faz irrigar a terra com seu leite.

Mas não é preciso explicação para meus desígnios. Meu amor é devastação... até do próprio amor. Eu destruo com a paradoxal calma e desespero da alma. Faço tudo ressurgir. Não sei ao certo como minha partida para o exílio ocorreu. Só que minha linguagem foi invadida, deturpada, desacreditada e, finalmente, esquecida. Alguns ainda a ouvem no fundo de seus corpos, como uma dor que perpassa o ventre e o coração. Lancinante e inquietante. Outros apenas me enxergam de longe, em meu corpo mais belo, como satélite apagado da terra. Os que vivenciam a minha evocação religiosa falam através de minha linguagem mística. Essa linguagem, reconhecida como profissão erudita, é a única para as quais as academias não estão abertas. É insustentavelmente mística porque carrega a essência do mito que foi abandonado, sufocado, mas que pulsa densamente... visceralmente. Vocês o sentem pulsar. Como um susto e uma inquietação inexplicáveis com o mundo que passa.

Eu sou o próprio mito poético. E a poesia é mergulhada em magia, em “desonrosa” magia. A poesia lhes foi segredada. O deus que hoje cultuam serve de baú para um segredo fechado por séculos.

Muitos passaram ao largo da linguagem mítica que eu inspirava. Ignoraram a morte, nascimento e beleza... E a criação foi irremediavelmente secada. Adoradores de Apolo dizimaram o encantamento e a esperança de minhas árvores sagradas (PAUSA), e eu, o ventre de todos os bosques, tive minhas crias arrancadas. Adoradores de Apolo tornaram as casas de cabeça para baixo. As mulheres foram expulsas de seu intelecto, quando o macho, em tentativa desesperada de libertação, deglutiu a homossexualidade ideal. E agora, minhas mulheres que deveriam ser atravessadas de corpo e espírito na busca pelo auto-conhecimento, são náufragas errantes. Elas mesmas já se esqueceram de sua linguagem. Elas mesmas observam o “hoje” com estranhamento... E não sabem ao certo... Não percebem que todos os mitos foram ridicularizados e todos os símbolos de sua linguagem e de sua essência pertencem ao circo, à mesa e ao jogo cartesiano. Só sentem o desprezo velado. Sabem que a linguagem poética racional não acompanha o seu sentimento e o desequilíbrio, que é o princípio de toda a criação. O desequilíbrio entre a morte e o ressurgimento da arte e da beleza.

Meu desabafo pode parecer perverso e irrelevante para os que são facilmente iludidos pelo dinheiro, que compra o hoje quase por inteiro, exceto a verdade. E os poetas possuídos por essa verdade devem confessar, no entanto, a sua deslealdade. Prestam a mim um serviço de meio-expediente. (Pausa) Pois seria melhor que não prestassem serviço algum! São raros os momentos em que em tempo restrito percebem o delírio de minha presença e de minha ausência. Só fazem ferir o mito poético recorrendo à “poesia clássica”. A verdadeira linguagem mística acontece como um milagre pra aqueles que são obstinados com a verdade. A verdade da minha existência. A verdade que sou em todo o tempo. Em todo o tempo e em tempo algum, pois que sou o avesso do tempo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Profundamente intenso!
Eu, que já imaginei uma atuação, fiquei ainda mais envolvida.
Vou reler algumas vezes mais pra sentir que absorvi o máximo possível do teu texto.
E boa sorte!!!

Beijo! =*